terça-feira, 11 de outubro de 2016

Invisíveis

1
Foi pelo caminho mais difícil:
Tapou os ouvidos, atravessou o corredor
E toda aquela gente gritando, chamando, olhando torto
Cortando os pulsos com os olhos
Sentiu-se morto
E já que ninguém deu por falta
Sentou-se à esquerda na passarela
Atrapalhando o tráfego
Cobriu os pés, fechou os olhos e se curvou:
Descansou.

2
Do outro lado do viaduto, o fedor do rio:
Vinha com pressa, olhando em volta
Alguém podia notá-la, era tanta gente nas escadas, no ponto,
Os ônibus lotados, o mau cheiro, o calor
Sentia-se seguida, perdida
Mas como estava cansada
Sentou-se no meio fio,
Pegou a pedra, apertou-a, sentiu-se morta,
Revirou os olhos, beijou o céu
Acendeu o fósforo e se largou:
Delirou
– e dormiu.

3
Mais perto do verde, mais frio;
Beijou o rosto no espelho do banheiro, desejou-se um bom dia
Guardou o pouco que tinha no casaco, entre os dedos, no bolso
Sentia o impulso apertando o peito
Cheirou; sentiu-se vivo
Como ninguém o notava, caiu em si
Chorou, compulsivamente e sozinho,
Atravessou, desceu da balsa, avistou a ponte,
Pegou um desvio no caminho, pensou e pensou:
Calou-se
E mergulhou no rio.

4
Na porta da loja, pegava vento
Falando com quem passava, todo sorrisos
A banquinha em mãos, esperava, esperava, esperava
Só de olharem já era um alento
- era visível –
Mas nunca, nenhum dia, alguém comprava
Afinal, era um velho fedido
Um dia cansou, puxou a navalha
Gritou por ajuda – ninguém entendeu, queria atenção
Mas, em vez de ouvir,
Aquela gente ficou assustada
Chamaram o segurança,
Tomou porrada,
Foi parar na delegacia,
Pegaram dele o pouco que restava
De volta à rua, encarou o viaduto
Olhou para o céu, depois para os pés, e pensou:
É hora
E desistiu.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

2016

Essa sucessão de ideias soltas
Essas frases de efeito vazias
Essa raiva de tudo que se move
Essa vontade de gritar, cuspir na cara,
Mandar pro inferno – e que nunca volte!

Esse grito guardado
[que vem à tona depois de cuspir no prato]
esse jeitinho pacato
que, lá no fundo, é histeria
tudo falso
tudo bem montado
tudo encenado
monitorado:
demagogia

Essa gente de bem,
Tão sensata e cheia de si,
Parece estar incomodada
Mas – mal sabe – é mobilizada
Sem que se dê conta do que está por trás
Mas insiste em estar aí
Na cara

Essa é a nossa mais nova energia
O que nos move, o que nos intriga
Espumante, babante,
Revolta seletiva e programada
Vazia em meias-palavras
E cheia de covardia

Singularizada:
O problema está numa cara
E uma tremenda gritaria
Esconde os reais motivos
No fim das contas, tudo decidido
Essa vontade de largar tudo,
Essa moral que serve de escudo
É, antes de mais nada,
Fruto de pequenos arroubos seletivos

Essa sucessão de revoltas
Esses projetos, essas ideias já mortas
Essa nuvem que paira à nossa volta
Tudo já esteve por aí
E voltou para nos lembrar
Que pobres de espírito somos
Nunca aprendemos,
Nunca cansamos

Essa é a mais pura demonstração de não afeto
De um desejo mórbido, passado, abjeto
Que, não fosse escuso, não surgiria
Travestido de vontade de guerra
E, mesmo assim, sendo chamado
Cidadania.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Bárbara


Umas três da manhã
Desceu, de escada e de pijama,
Acendeu um cigarro, descalça passou a portaria
Desceu a ladeira
Bem mais devagar do que de costume
Bem mais feliz do que gostaria

Arrastou a pele contra a garoa fina
Era verão, mas pouco importava:
Não tinha proteção, nem energia,
Chegou ao canal, sentou-se à beira
Viu seu olho vazio espelhado naquela nojeira
Por algum motivo, permanecia inteira
E ali ficou, punindo-se com o fedor
e o frio.

Ninguém entendia,
Parecia louca,
Mas às vezes cansava da segurança;
Às vezes só queria se expor como todo mundo
Há quantas noites ia sentar por ali
Procurando um problema para a sua vida
Sentia um vazio enorme, e tão pesado
- E tão profundo! –,
No entanto, nunca encontrava nada
Para onde olhava, só se via.

No fundo, era isso que a fascinava:
A sensação de que ia, voltava,
Pegava o roteiro de sua vida e amassava
Jogava-se no lixo
Mas tudo permanecia no mesmo estado:
Toda tentativa de dar a volta
dava num caminho ermo e equivocado.

Um dia, então, deu-se conta
Precisava atravessar a ponte, ir até a ponta,
Dividir o chão com aquela gente semimorta
Era hora de ser outra;
Estava pronta.

Largou no chão suas roupas
A bolsa, largou na esquina,
E assim, entregue, absorta,
Entregou-se a si mesma
Naquela noite fria, sentiu-se nua e forte

A manhã nasceu com cheiro de morte
Pra moça de alma rouca
Via-se numa estrada infinita, vazia,
Agora não mais falava;
Só ouvia.

Qualidade

Farsantes e mais farsantes
Andando juntos, cheios de glória
Brincando de viver, brincando de si
Brindando suas próprias conquistas
Tão desproporcionais, irreais
Tão delirantes

Expandem suas conquistas
Coisas pequenas, subitamente, tomam vida
Apagam o que está à volta:
Não satisfeita em se deixar ver
Essa gente se deixa escarnecer,
É sua própria piada
Seu próprio alimento
Sua própria razão de vida.

Essa gente pequena, mas que se engorda
Olha-se no espelho e fica assim, absorta,
No entanto, finge-se de morta
Quando precisa;
E aí convence, e assim se perpetua,
às vezes sem notar,
Sem se fazer percebida.

São como vermes comendo uma fruta na cesta
Sobrevivem de migalha
De vender-se e, sei lá como, gerar encanto
Gentalha – se um dia soubesse imitar
Não seria tão frágil e exposto
Querendo ser só assim
Normal
Quase mediano.

Percepção



Acordou, da cama gritou para os pais:
Hoje vai ser um bom dia!
Saiu de casa, rodou, andou, deu voltas,
Encontrou uma gente de cara fechada,
Abraçou quem gostava,
Apertou as mãos, bateu algumas portas
Vendeu-se bem: menina esperta;
Mas, de novo, não ganhou nada.

Voltou pra casa cabisbaixa,
com a sensação de derrota;
chorou um pouco, trancou a porta,
depois voltou à sala,
Disse-lhes novamente:
Amanhã vai ser incrível!
Vou dormir, estou morta.

E assim foi mesmo:
No dia seguinte, estava na rua e viu as luzes ao longe
antes que pudesse dizer qualquer coisa
reconheceu a cara,
o suor, a cara de ódio:
lembrou seu fedor,
lembrou seu nome.

Saiu correndo
Derrubou uns pelo caminho
A bolsa caiu na vala
A chuva caía devagar, cortante
Sentiu-se impotente
Tentou pedir ajuda
Não deu tempo:
sentiu a pontada no peito.

Caiu no chão, devagar
viu-se, então, morrendo
beijando uma poça, virada pra serra
a alma ardendo.

Tão bela, tão exposta
largada na lama, que nem bosta;
fechou os olhos como todas as noites:
com um mundo inteiro gritando
e um monte de gente esperneando
lá dentro de si.


Expectativa

Pra que planejar tanto
Organizar tudo mentalmente
Colocar as coisas no chão
Montar um caminho,
Eleger uma direção
Fingir-se cheio de planos
e estar seguro de si
Se, no final,
É sempre tão diferente,
Se é sempre não viver,
E sim assistir?

Pra que expectativa?
Mover as peças, acender a luz
De repente pensar:
Essa não é a minha vida!,
Se no fim das contas a gente se depara
Com alguma surpresa amarga
E dá meia-volta
E volta de onde partiu:
Se dá conta que nem saiu
Da própria cabeça
e das próprias expectativas

Por que mexer
Nesse mesmo lugar que, vez ou outra,
É ferido
Se no fundo, nada muda,
Só fica o incômodo
A frustração, a dúvida
A sensação de que algo nisso tudo
Nunca fez – nem fará – sentido?