sexta-feira, 7 de maio de 2010

#2


Todo dia acordava, a mesma menina,
enrolada em papel, na marquise de algum lugar,
vestia a mesma roupa, lavava o rosto, e andava, andava
no viaduto chegava e sentava sem falar;

Passava o dia calada, às vezes nem queria,
rastejava, ia e vinha, escutava - ouvia, até, sem reclamar;
dez picos depois, acabava a rotina,
deitava no chão e sentia, tranquila, que o dia já ia terminar;

Sozinha, rezava em voz baixa qualquer coisa,
mais por hábito (inércia?) que por acreditar;
de manhã, de novo, estava sozinha,
desta vez o sol já batia
tirava os trapos com que se protegia
daquele frio que só a rua lhe podia dar.

Assobiava, rosnava - falar, jamais - à gente que passava,
pedia qualquer coisa e ganhava um pouco mais,
corria pro mesmo viaduto,
sentava só, naquele canto escuro,
e torcia para que o dia, de novo, não tardasse a findar;

Todo dia pensava no quanto era sofrida,
no quanto o batente lhe doía
as pernas, as coxas, as costas, as mãos,
Mas chega de devaneio:
dessa vez, a noite era fria,
catava de novo os trapos, os panos, os papéis que nunca lia - não o sabia -,
deixava-os sobre a pele cansada
e voltava a se cansar.

Belo dia, acordou mais cansada que de hábito,
com vontade de falar, perturbar a ordem,
se fazer percebida - espernear;

Andou um pouco mais até a via expressa,
desviando da própria vida,
e, entorpecida, esquálida, histérica,
se jogou e se deixou - em paz - descansar.

#1


Não é difícil se impressionar
com tantos vaivéns, tanta gente, tanta pressa, tanta rua, tanta pista:
há certo charme em, por aqui, se perder - andar,
dar de cara com o inesperado,
talvez um novo bairro, imenso e isolado,
cercado de mais gente, mais vais e véns, mais vielas e avenidas;

Talvez seja mais fácil só olhar
e, à distância, fingir desprezo,
do que encontrar, entre as curvas, algum charme,
alguma beleza por trás do aço-e-concreto,
um parque, uma pracinha, uma calmaria,
uma tarde chuvosa e fria, uma entrada de bulevar;

É, no fim das contas, vale a pena
gostar - amar - tudo isso, mesmo que sem qualquer sutileza
talvez o melhor seja viver atrás da tal beleza
(que se esconde) em dias, ou madrugadas - ou vidas inteiras -,
tão belas e, ao mesmo tempo, tão pequenas.

domingo, 2 de maio de 2010

Pretensão


É tão fácil, mas tão fácil
presumir que todos são assim, vis e inconsequentes;
irresponsáveis travestidos de jovens promissores e emergentes,
fugitivos de sua própria vida, do dia-a-dia quente daquela cidade esquecida, inóspita,
calorenta, fracassada, falida,
deprimente

É tão fácil - mas nada válido -
criticar, generalizar, aproveitar a tal postura crítica e valente
para disparar todo tipo de observação, ponderação - asneira,
como se a vivência não falasse tão alto quanto a pretensão
de muito julgar, avaliar,
falar pelos cotovelos e para quem quiser ler
que todo viajante, migrante, é louco,
que todo cuidado é pouco
à hora de fazê-los encarar
a vida de cão que se insinua à frente;

Talvez veja assim por preguiça de se explicar,
ou avaliar as próprias ideias,
ou, quem sabe, generalizá-las demais tenha lá seu charme;
A verdade é que - doa a quem doer -
há aquele cheirinho de frustração no ar,
aquelas meias-palavras e citações cheias de mal estar
de quem por falta de oportunidade - ou coragem - ficou por lá
e agora vive assim, a si e aos outros remoendo

Inveja,
ou raiva,
ou ciúmes,
ou a consciência de que está brigando com tudo e todos,
talvez consigo.
E perdendo.

* Recadinho sutil. Como diria uma amiga, "Deus abençoe os chatos, pentelhos, imbecis e etc. de plantão".